Qual a diferença entre Inteligência Artificial e Machine Learning?

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Eu sou Professor de Data Science já há alguns anos, e não é incomum, entre alunos e colegas termos ricas conversas e debates sobre o tema Inteligência Artificial e Machine Learning. Me lembro de uma aula onde os alunos colocaram questões tão interessantes que as respostas direcionaram aquela aula e as aulas seguintes.

Algumas das questões foram:

  • “Quem foi que determinou que Inteligência Artificial teria esse nome e porquê?”;
  • “Inteligência Artificial e Machine Learning são a mesma coisa?”;
  • “Como as empresas, como Netflix, por exemplo, conseguem recomendar filmes utilizando Machine Learning”?

e, talvez a pergunta mais complexa veio na sequência:

  • “Como controlar o “poder” da Inteligência Artificial e como é definido o processo ético do uso desta abordagem no nosso dia-a-dia?”.

Percebam que estes alunos, fizeram perguntas quevariaram desde pontos históricos e conceitos fundamentais passando pelo uso de Inteligência Artificial no dia a dia e, chegaram a questões bastante complexas relacionadas ao bom ou mal  uso destes “procedimentos”.

Para escrever este artigo, eu me inspirei nestas interações que tive (e tenho) com meus alunos. De uma maneira geral, o meu objetivo é replicar as reflexões que fizemos, naquela prazerosa aula, onde percorremos, de uma forma geral, os principais tópicos relacionados ao nosso tema central.

O que é Inteligência Artificial e Machine Learning?

Vamos começar pelos conceitos fundamentais, que na verdade, deram início a toda reflexão feita durante as aulas.

Se formos ao dicionário online dictionary.com teremos as seguintes definições sobre Inteligência Artificial:

  1. a capacidade de um computador, robô ou outro dispositivo mecânico programado de realizar operações e tarefas análogas ao aprendizado e tomada de decisão em humanos, como reconhecimento de fala ou resposta a perguntas;
  2. um computador, robô ou outro dispositivo mecânico programado com esta capacidade humana;
  3. o ramo da ciência da computação envolvido com o projeto de computadores ou outros dispositivos mecânicos programados com a capacidade de imitar a inteligência e o pensamento humanos;

Utilizando estes conceitos como referência, podemos dizer que Inteligência Artificial (AI) é uma tentativa de tornar os computadores tão inteligentes, ou até mais inteligentes que os seres humanos. Trata-se de dar aos computadores comportamentos semelhantes aos humanos, processos de pensamento e habilidades de raciocínio.

E na verdade, AI está inserido nos nossos dias sem mesmo que apercebamos. Por exemplo quando utilizarmos o assistente virtual nos nossos telemóveis para verificar se irá chover no final do dia, ou quando fazemos uma simulação de crédito em um banco, quando jogamos vídeo games como Far cry ou Call of Duty, e em sistemas de segurança que detetam se os colaboradores estão adequadamente vestidos ou equipados para trabalhar utilizando computer vision. As aplicações no mundo corporativo são inúmeras, por exemplo, compras online, “web search”, “smart homes, cities e infrastructure”, “Cybersecurity” e combate a “fake news”.

O termo Inteligência Artificial foi estabelecido em 1955 em uma proposta para um "estudo de inteligência artificial de 2 meses e 10 homens" submetido por John McCarthy (Dartmouth College), Marvin Minsky (Harvard University), Nathaniel Rochester (IBM) e Claude Shannon ( Laboratórios Bell Telephone). O workshop, que ocorreu um ano depois, em julho e agosto de 1956, é usualmente considerado o momento de nascimento oficial deste termo.

Apesar do termo ter sido estabelecido em 1955, a origem deste contexto é muito anterior. Para ser ter uma ideia, em 1308 o poeta e teólogo catalão Ramon Llull publica Ars generalis ultima (The Ultimate General Art), onde são falados de métodos de uso de meios mecânicos baseados em papel para criar novos conhecimentos a partir de combinações de conceitos. Outra referência histórica data de 1666. Neste ano, o matemático e filósofo Gottfried Leibniz publica Dissertatio de arte combinatoria (Sobre a arte combinatória), seguindo o trabalho proposto por Ramon Llull ao propor um alfabeto do pensamento humano e argumentar que todas as ideias nada mais são do que combinações de um número relativamente pequeno de conceitos simples. Estes são exemplos históricos que representam o “embrião” acadêmico do que hoje chamamos de Inteligência Artificial.

Qual é a relação entre Inteligência Artificial e Machine Learning?

Ainda há muita confusão entre as pessoas e na mídia sobre o que é genuinamente Inteligência Artificial e o que exatamente é Machine Learning. Frequentemente, os termos são usados ​​como sinônimos.

Citando reitor interino da School of Computer Science da CMU, Professor e Ex-Presidente do Departamento de Machine Learning da Carnegie Mellon University, Tom M. Mitchell:

“Um campo científico é mais bem definido pela questão central que estuda. A área de Machine Learning (ML) busca responder à pergunta: Como podemos construir sistemas de computadores que melhoram automaticamente com a experiência, e o que são as leis fundamentais que regem todos os processos de aprendizagem?”

Podemos afirmar que AI é uma tecnologia com a qual podemos criar sistemas inteligentes que podem simular a inteligência humana. Já Machine Learning ou ML é um subcampo da AI, que tem seu foco no aprendizado de máquinas de tal forma que as máquinas aprendam com dados ou experiências anteriores sem serem explicitamente programadas.

Aplicações de Inteligência Artificial e Machine Learning

Do ponto de vista prático, voltando as questões que me foram feitas durante a aula, como citei no início do artigo, como as empresas, como a Netflix utilizam AI e ML nos dias de hoje?

É interessante que, apesar de AI e ML remeterem a contextos extremamente atuais e modernos, muitos dos algoritmos que são utilizados hoje, tem a sua gênese há muitos anos no passado.

O sistema de recomendação, por exemplo, é muito utilizado por gigantes corporativos mas a sua origem não é de agora. Relembro de um excelente livro que lí, “AIQ – How artificial inteligence works and how we can harness it’s power for a better world, escrito por Nick Polson e James Scott, onde, de forma simples e didática, os autores exemplificam como muitos dos algoritmos utilizados hoje, na verdade já haviam sido muito explorados no passado. E um dos meus capítulos preferidos, é o primeiro chamado The Refugee. Este capítulo aborda de uma forma muito interessante aplicações de sistemas de recomendação no passado. Além disso, é contado a história do pesquisador e estatístico húngaro, Abraham Wald.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Wald foi membro do Grupo de Pesquisa Estatística (SRG) da Universidade de Columbia, onde aplicou suas habilidades estatísticas a vários problemas relacionados a guerra. Um de seus trabalhos estatísticos mais conhecidos durante a 2ª Guerra Mundial foi como minimizar os danos em aviões bombardeiros levando em consideração o viés de sobrevivência em seus cálculos. Na verdade, podemos seguramente dizer que este trabalho, na verdade é um sistema muito interessante de recomendações.

Este sistema, era totalmente originado através de probabilidades condicionais, ou seja, a probabilidade de algum evento acontecer, sendo que algum outro evento tenha acontecido antes.

A fórmula acima representa que a probabilidade de evento B acontecer, considerando que o evento A já aconteceu, é igual à probabilidade de interseção entre o evento A e o evento B, dividido pela probabilidade de evento A.

Vamos considerar o problema de Wald. O objetivo era, estimar o probabilidade, do avião retornar a base considerando que ele tenha sido atingido em um ponto específico. Ou seja, o objetivo era calcular a probabilidade do avião voltar à base (evento B) sendo que, este avião foi atingido na fuselagem (evento A). A probabilidade conjunta A e B representa a probabilidade de um avião retornar à base (B) com relatórios de danos na fuselagem (A). No fundo, o que Wald propunha era “personalização” de reparos para cada tipo de avião utilizando probabilidade condicional.

O mais interessante é que os princípios utilizados por Wald, são os mesmos aplicados hoje na Netflix para recomendar filmes aos seus clientes. A Netflix é uma empresa que prosperou muito e, em parte, isso é devido ao uso massivo de Inteligência Artificial Machine Learning.

Por exemplo, suponha que uma analista da Netflix queira calcular a probabilidade de uma pessoa assistir ao filme: “Life is Beautiful” (chamamos isso de evento E) dado que ela já tenha assistido a outro filme: “Amelie” (chamamos isso de evento F).

Ao utilizarmos probabilidade condicional temos:

Ok, mas como isso é utilizado no dia a dia?

Ora, se o analista tem a informação que um cliente assistiu ao filme “Amelie” e, ao calcular a probabilidade acima, ele obtenha uma valor considerável, a empresa pode “personalizar” a sugestão e indicar ao cliente o filme “Life is Beautiful”.  Percebam que as ideias acima são muito similares as que Wald e sua equipe, utilizaram em 1944 e estão relacionadas a recomendações assertivas.

De uma forma geral, as recomendações “personalizadas” feitas pelas empresas, resultam em uma melhoria na experiência e satisfação do cliente com a empresa, geram um aumento da receita, potencializam a “retenção” dos clientes e, por consequência, proporcionam um aumento na fidelização.

Ética na Inteligência Artificial - Ethical AI

Um outro ponto muito recorrente é relacionada a ética no uso de Inteligência Artificial e Machine Learning.

À medida que mais organizações implementam AI e ML, em seus processos, os líderes empresariais estão examinando mais de perto o viés destas implementações ​​e as considerações éticas envolvidas. A isto se chama “Ethical AI”.

Por definição, “Ethical AI” considera o impacto total do uso da AI e ML em todas as partes interessadas, desde clientes e fornecedores até colaboradores. Também considera o impacto do uso da tecnologia não apenas nas pessoas que a utilizam mas no mundo que as cerca, garantindo que seu uso seja justo e responsável.

Questões como decisões automáticas, desemprego devido à automação, e práticas de vigilância, com AI e ML, que limitam a privacidade são exemplos de pontos polêmicos de debates relacionados a este tópico.

Esse assunto é extremamente importante. Na verdade, embora AI e ML esteja mudando a forma como as empresas funcionam, há preocupações sobre como ela pode influenciar nossas vidas. Esta não é apenas uma preocupação acadêmica ou social, mas um risco para a reputação das empresas.

Nenhuma empresa quer ser exibida na mídia com exposições polêmicas relacionadas a “Ethical AI”. Temos um exemplo “recente” disto ocorrido na Amazon.

O que ocorreu foi que houve uma reação significativa devido ao uso de um software lançado pela Amazon chamado Amazon Rekognition. Apenas para contextualizar, Amazon Rekognition é um software para computer vision baseado em “cloud” que foi lançado em 2016. Ele foi vendido e usado por várias agências governamentais dos Estados Unidos, incluindo US Immigration bem como entidades privadas para fazer reconhecimento facial. O uso deste software sofreu alguns impactos negativos.

Isso foi seguido pela decisão da Amazon de interromper o fornecimento dessa tecnologia para as autoridades policiais e, em junho de 2020, a companhia anunciou que estava aplicando uma suspensão de um ano para o uso dessas ferramentas pela polícia, alegando que a pausa poderia dar ao Congresso dos Estados Unidos tempo para decretar garantias contra o uso indevido do reconhecimento facial.

Uma outra abordagem do “Ethical AI”, são os receios associados a como o uso de  AI e ML afetará o mercado de trabalho. Vários estudos mostram que atividades profissionais desaparecerão, sendo substituídas por atividades que até o momento são desconhecidas ou inimagináveis. Com frequência, são divulgadas listas com as profissões com maior probabilidade de desaparecer no futuro.

Mas se faz necessário ressaltar que o uso de  “Ethical AI” é muito importante no dia a dia das empresas até para evitar a disseminação de mal conceitos relacionados, por exemplo, ao gênero, raça ou opção sexual.

É necessário a promoção do debate relacionado as implicações éticas, regulatórias e políticas que surgem do desenvolvimento tecnológico. Na minha opinião, ele deve se concentrar em como as técnicas, ferramentas e tecnologias de IA e ML estão se desenvolvendo, incluindo a consideração de onde esses desenvolvimentos podem levar no futuro.

Conclusão

Inteligência Artificial e Machine Learning há muito deixaram de ser buzzwords e o seu uso foi incorporado no dia a dia de todos.

Eu acredito que existam algumas resistências em relação ao uso de AI e ML, mas em meio ao medo de que sejam uma ameaça agora ou no futuro, é evidente que AI e ML trazem benefícios substanciais e críticos para os humanos.

Usar os sistemas que imitam a inteligência humana e animal é a próxima fronteira na solução de problemas na sociedade. Nesse sentido, já vemos a sua aplicação em campos como a medicina para buscar a cura de doenças complexas e crônicas ou, nas redes sociais, para identificar de forma prévia a ação de pedófilos ou, identificar comportamentos fraudulentos muito antes que as fraudes venha a acontecer.

Além disso, à medida que o homem aumenta as suas atividades na superfície da Terra, com o suporte de AI e ML, a natureza pode se beneficiar e estar mais resiliente aos desastres naturais. Nesse caso, AI e ML são extremamente úteis e benéficos como parceiros para ajudar os seres humanos a melhorar a sua qualidade de vida, a prevenir situações não desejadas, a mitigar problemas irreparáveis e proporcionar um mundo sustentável para as gerações futuras.

 

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About Author

Ricardo Galante

Senior Systems Engineer - Customer Advisory

Ricardo é Analytics Customer Advisor no SAS Institute sendo um dos responsável pela área de Business Advanced Analytics em Portugal em diferentes indústrias.  Profissional com mais de 20 anos de experiência no mercado na área analítica, com sólida atuação em inteligência artificial, data science e estatística. É docente convidado na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e também na Universidade Europeia e no IPAM (Instituto Português de Administração de Marketing) onde ministra cursos de Data Science. É Doutorando em Estatística na Universidade de Lisboa, Mestre e Graduado em Estatística pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.

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